Apresentação do Dossier: Coletividades e Reciprocidades
Luiz Inácio Gaiger[*]
Ações coletivas têm sido um dos temas mais presentes na Revista Otra Economía, em particular quando constituem formas de resistência às lógicas dominantes em nossas sociedades e quando manifestam e concretizam aspirações emancipatórias. Deveras, no curso dos últimos dois séculos as reações mais significativas contra os processos de expropriação, exploração e opressão social se têm verificado por meio de coletividades de ação, quer estejam profundamente enraizadas em sistemas atávicos de vida e de economia dos setores populares, quer sejam iniciativas motivadas por novas solidariedades e pela vontade consciente de agir em comum. Na última década, presenciamos tanto uma ressurgência quanto uma emergência de variadas experiências, do associativismo e do cooperativismo próprios dos sécs. XIX e XX às inúmeras expressões da economia social e solidária e, por fim, a novas modalidades de ação igualmente centradas no agir coletivo.
Entre as novidades, constata-se que, na sequência das mobilizações altermundialistas dos anos 2000 e da chegada à frente da cena de mulheres, jovens e novos militantes de variadas causas, o termo coletivo foi valorizado e passou a designar uma nova geração de iniciativas. Em sentido estrito, os coletivos são via de regra promovidos por pequenos grupos de pessoas que se relacionam diretamente entre si, agindo por vezes com o respaldo de organizações associativas, cooperativas, comunitárias ou de base territorial. Como exemplos, podemos citar as ecovilas, as comunidades hackers, as fábricas recuperadas por trabalhadores, vários grupos de intervenção urbana e diversos círculos de mulheres. Os campos de atuação são muito diversos, em geral combinando questões da vida cotidiana de seus integrantes com temas de interesse público, muitas vezes com ressonância global. Essas coletividades dedicam-se a uma infinidade de causas e missões, como agendas feministas, bissexualidade, direitos humanos, cultura, artes, comunicação, saúde e educação. Em pano de fundo, elas sustentam abordagens críticas ao nosso modelo civilizatório e aos nossos padrões éticos e estéticos. Assim, promovem novos engajamentos, independentes ou vinculados a movimentos sociais, locais e globais.
Não obstante seus traços inovadores, os coletivos dão eco e continuidade a princípios de autogestão, justiça e equidade há mais tempo veiculados pelos empreendimentos de economia solidária e por experiências similares. Encontramos coletivos identificados explicitamente com a economia social e solidária, com destaque às cooperativas de trabalho, bem como iniciativas ligadas à espiritualidade, ao consumo ético, à agroecologia e ao veganismo, entre outros. Como se verá nos artigos que compõem esse dossiê, há linhas de continuidade e processos de inovação nesse vasto campo de resistência e de produção de alternativas.
Os primeiros dois trabalhos, a seguir, exploram algumas das novas formas de ação coletiva, tratando-se em ambos do cooperativismo de plataforma. De um lado (Julice Salvagni et al.), esse fenômeno recente é situado no contexto dos processos de acumulação do capitalismo global. Indaga-se sobre suas possibilidades de configurar alternativas às estratégias de precarização e exploração do trabalho, por meio da autogestão cooperativa e de pressões pela regulamentação das relações de trabalho na economia digital. De outro lado (Jeová Silva Jr. et al.), examina-se o uso, em boa medida pioneiro, de plataformas digitais para promover e expandir moedas sociais e sistemas de prestação de serviços. Por meio de arranjos institucionais consideravelmente complexos, as experiências nesses casos evidenciam que recursos de conexão e gerenciamento informacionais, por via da cooperação, podem sustentar movimentos de reencaixe (no sentido de Karl Polanyi) da economia e de proteção do tecido social.
Cooperativas de trabalho e institucionalização constituem, por outras vias, o tema do artigo seguinte (Sandra Sterling), no qual se examina como o ativismo institucional direcionado ao Estado passa a ser requerido das cooperativas, em favor do seu processo de institucionalização. Afastando raciocínios dicotômicos em termos de cooptação ou autonomia, a autora conclui que as cooperativas encontram benefícios na participação de seus representantes em estruturas de governo, graças à criação de vínculos que favorecem o seu desenvolvimento e sustentabilidade. No quarto artigo (Natalia Bauni), cujo foco recai sobre a última década na Argentina, demonstra-se que as cooperativas de trabalho se reconfiguram, envolvendo desde setores profissionais a grupos sociais vulneráveis, distintos do perfil típico das empresas recuperadas do início do séc. XX. Essas cooperativas apresentam inovações que as credenciam como formas de resistência ao capitalismo neoliberal, agindo em seus interstícios (no sentido de Eric Wright), desde as margens do sistema, com efeitos tangíveis nos níveis de segurança social e bem-estar de seus integrantes e suas comunidades.
Além de contestar o sistema em que vivemos, resistir às suas invectivas e predicar por sua transformação, as organizações coletivas procuram criar espaços semiautônomos, nos quais protegem as pessoas e colocam em prática suas aspirações de viver de outro modo, mesmo neste mundo. Por isso, na sequência desse dossiê os artigos atêm-se à discussão e proposição de arcabouços teóricos explicativos dos fundamentos do agir e da solidariedade presente nessas iniciativas.
Postula-se em primeiro lugar que o entendimento adequado das dinâmicas coletivas implica um distanciamento crítico das visões correntes sobre o trabalho, cuja referência principal ainda são as relações assalariadas próprias ao mundo industrial e aos contratos formais de emprego. Como se argumenta em pormenores e com ampla revisão bibliográfica no artigo a esse respeito (Gabriel Kraychete), representações hegemônicas sobre o mundo do trabalho precisam ser revistas para que se entenda com propriedade os sentidos do trabalho no interior da economia dos setores populares, cuja predominância em países como o Brasil é inconteste. Esses setores têm participação efêmera em relações formais de trabalho, conquanto suas estruturas de reprodução vital das famílias mobilizam outros padrões, relacionais e coletivos, em particular a reciprocidade.
Essa última categoria é tematizada no artigo seguinte (Nicolás Gómez e Matías González), desta feita relacionada ao conceito de “mercados de reciprocidade positiva”. Aqui, trata-se de práticas de intercâmbio que se revestem de conotações distintas das trocas mercantis convencionais. Elas constituem uma das dimensões pelas quais se pode conceber e operacionalizar o conceito de coletivo, previamente a sua posta à prova em pesquisas empíricas. O exercício de aplicação relatado no artigo conduz a uma percepção multidimensional dos coletivos, pelas quais se distinguem de outras formas de vida econômica, sobretudo do utilitarismo reinante no padrão das interações e intercâmbios de mercado.
O artigo subsequente (Roberto da Silva et al.) examina as estratégias organizativas dos coletivos que atuam na coleta de materiais recicláveis no Brasil, um setor notável por seu crescimento e consistência como ator da economia solidária no séc. XXI. Dentre vários aspectos, deixa evidente o papel fundamental da cooperação e da reciprocidade, seja no processo de trabalho ou de gestão, seja no desenvolvimento e compartilhamento de saberes, seja ainda nos embates constantes na esfera pública. Não obstante retrocessos sejam visíveis nas políticas para o setor, é com base em seus ativos relacionais que o movimento das catadoras e catadores tem logrado resistir em bases territoriais, ampliar sua força política e viabilizar suas estratégias frente ao mercado, ao poder público e a outras instituições sociais.
É precisamente a dimensão relacional do ser humano o que foi sendo esquecido pela ciência e pela prática econômica, à medida que se limitaram a uma lógica estritamente instrumental e relegaram a uma posição marginal o princípio de reciprocidade, fundamento da práxis de nosso viver civil. Com esse ponto de partida, a reciprocidade constitui o objeto de reflexão do artigo seguinte (Roberta Curiazi), que propõe entendê-la como um dos pilares da economia civil (no sentido de Stefano Zamagni), ao lado da fraternidade. Esse enfoque alude à lógica da dádiva, na qual a reciprocidade responde a uma atitude de reconhecimento mútuo, de inclusão do outro como parte ativa do sistema de relações. Nessa perspectiva, o artigo identifica modalidades e âmbitos variados de reciprocidade, trazendo um aporte valioso para o adensamento do conceito e para sua aplicação às realidades empíricas.
Em que medida o padrão de relações dos coletivos, ao apoiar-se no princípio da reciprocidade, sustenta o engajamento das pessoas que integram os coletivos e as mantém ativas e altivas, na busca de conquistas efetivas coerentes com suas aspirações emancipatórias, não obstante o ambiente de adversidades ou de distopias de nossos tempos? O último artigo desse dossiê (Luiz Gaiger) aporta respostas a essa questão, ao examinar parte do corpus de uma pesquisa empírica internacional em curso. Comparando trajetórias, motivações e dinâmicas dos coletivos, propõe uma tipologia a respeito, com modelos correlatos de reciprocidade. Com tais variantes, a reciprocidade demonstra suas possibilidades de orientar e sustentar formas alternativas que escapam – e até certo ponto, se contrapõem – ao domínio da sociedade de mercado e à falácia de nossos tempos que aparta a economia da vida comum.
Com seus enfoques e suas ênfases, conceituais e empíricas, esse conjunto de trabalhos aporta contribuições substantivas ao entendimento das formas pelas quais, na esteira dos movimentos de resistência à lógica deletéria do capital nascidos no séc. XIX, o ativismo social se mantém vivo, insistindo em propor e experimentar alternativas de emancipação.
Luiz Inácio Gaiger
Editor invitado
Otra Economía, vol. 16, n.29, 91-93 – enero/junio 2023 – ISSN 1851-4715
CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Gaiger, L. I. (2023). Apresentação do Dossier: Coletividades e Reciprocidades. Otra Economía, 16(29), 91-93
* Profesor del Programa de Posgrado en Ciencias Sociales de la Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil.
Entidad Editora: Universidad Nacional de General Sarmiento.